Joãozinho e Maria (1ª versão)

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ERA UMA VEZ um lenhador muito pobre e carregado de família, vivendo numa casinha no meio das matas. Apesar de muito trabalhador, passava fome. Numa noite, depois da ceia, a mulher disse que não havia cousa alguma que comer na manhã do outro dia. O homem começou a imaginar e acabou dizendo:
— Não vale a pena eu estar com meus filhos juntos comigo para que morram de fome. É melhor deixar uns dois na mata. Pode ser que encontrem uma alma caridosa e Deus tenha pena deles que são inocentes.
A mulher não dizia nem sim nem não, e rezava.
Entre os filhos havia uma casal de gêmeos, chamado João e Maria. Eram muito pegados um com o outro. Joãozinho ouviu a conversa do pai e compreendeu tudo. Pela manhã o lenhador mandou-os vestir e acompanhá-los para fazer lenha. Joãozinho levou o bolso cheio de pedrinhas brancas do terreiro da casa. Iam andando, andando, e aqui e acolá o menino punha uma pedrinha de sinal. Perto do pino do meio-dia o lenhador parou e disse:
— Fiquem aqui descansando que eu vou procurar umas abelhas de mel. Quando ouvirem um assobio grosso, sou eu. Vão no rumo...
E sumiu-se na mata escura. Joãozinho e Maria esperaram um horror de tempo e nada de ouvir o assobio grosso. Finalmente o menino disse que estava ouvindo qualquer cousa parecida com que o pai dissera. Foram procurar e encontraram um cabaço, de boca virada para o vento, fazendo aquela zoada grossa.
— Estamos perdidos, valha-me Deus, chorou Maria.
— Vamos voltar para casa, respondeu Joãozinho.
Botaram o pé no caminho, olhando as pedrinhas e lá para tantas da noite riscaram em casa. Estavam todos ceando porque um devedor pagara a conta e havia dinheiro para vários dias. Fizeram muita festa e foram dormir.
Quando o dinheiro acabou e a fome apareceu, o lenhador começou remoendo a idéia de deixar os dois filhos no meio da mata. Joãozinho não pôde apanhar as pedrinhas brancas porque a porta estava fechada e a chave tirada. Guardou o pão que recebera para a marcha e, quando amanheceu, todos três seguiram viagem. Joãozinho ia ficando atrás e espalhava pedacinhos de pão. Os passarinhos comiam. Sucedeu a mesma cousa da vez passada. O lenhador foi caçar abelhas e quando os filhos o procuraram só viram o cabacinho. O menino quis voltar mas não viu mais os sinais que deixara. Ficou triste mas não perdeu a coragem.
Andaram, andaram. Quando ia escurecendo tudo, Joãozinho subiu num pé-de-pau que era um despotismo de grande. Lá de cima enxergou, ao longe, uma fumacinha. Desceu mais-que-depressa, e foi na direção levando a irmã.
Encontaram uma casa muito bonita, toda clara por dentro e uma pessoa cantando. Chegando para mais perto as duas crianças viram que a casinha era feita de bolos e as telas açucaradas. Joãozinho quebrou um pedaço e entregou a Maria e se apoderou de outro. Uma voz perguntou:
— Quem está bulindo aí?
Esconderam-se depressa mas voltaram para comer.
E de novo a voz perguntou. Na terceira vez ouviram a voz bem descansada, bem nas costas deles:
— Ah! São vocês, meu netinhos? Tão bonitinhos e magrinhos! Entrem...
Entraram e a velha, que era uma feiticeira, deu um jandar gostoso e depois levou-os para um quarto onde havia de tudo. Fechou a porta e deixou-os dormir. No outro dia passou comida e água, e assim sucedeu nos dias todos. Joãozinho conheceu que a velha comia gente e estava engordando os dois para manjá-los. Caçou uma lagartixa, cortou-lhe o rabo e toda vez que a velha trazia comida e perguntava como eles estavam, respondia:
— Vamos bem.
— Mostre o dedinho!
Joãozinho passava a cauda da lagartixa. A velha, quase cega, palpava e dizia:
— Tão magrinhos! Vamos comer, meu netinhos!
E tratava muito bem. Meses depois Joãozinho e Maria estavam gordos, corados e fortes mas sempre mostrando o rabinho da lagartixa. Infelizmente, numa vez, Maria perdeu o rabo da lagartixa e quando a velha pediu que passassem o dedinho, Maria, que era muito sem juízo, mostrou o mindinho. A velha apalpou, lambeu os beiços.
— Estão no ponto. Vâo saindo, meu netinhos...
Deixou os dois saírem e deu um jantar de gente rica. Passou a noite fazendo arranjos e amassando pão. Pela madrugada acordou Joãozinho e disse que fosse buscar lenha cortada em toros. Ficou olhando para um lado e para outro pensando no que devia fazer quando ouviu umas vozes dizendo:
— Joãozinho?
— Oi?
— Leva a lenha para dentro e quando a velha acender a coivara e pedir que você e sua irmã atravessem a tábua que ela botou no meio, digam que é melhor ela fazer primeiro para ensinar. Empurrem a velha no fogo e não tenham pena.
Assim mesmo foi. A velha acendeu uma coivara que dava para assar dois bois. Atravessou uma tábua no meio e pediu que as crianças passassem para o lado de lá. Joãozinho disse que era perigoso porque não sabia fazer. Melhor era a velha ensinar. A feiticeira subiu para a tábua e quando estava justamente na metade, os dois puxaram bem depressa. A velha perdeu o compasso e pulou no coivarão, batendo as brasas e labaredas, queimando-se toda. E começou a gritar como uma desesperada:
— Água, meus netinhos!
— Azeite, senhora avó! — respondiam eles. E a velha ficou esturricada, dando um estouro como se fosse uma bomba.
Joãozinho e Maria correram a casa toda, vendo os quartos cheios de riqueza, roupa, pedras preciosas e muita comida e bebida.
Encheram uma porção de cargas e tocaram-se para a casa dos pais onde chegaram, depois de muitos dias. O lenhador, muito arrependido, ficou quase doido de contenteza, e abraçou os filhos chorando. A mãe e os irmãos nem se fala na alegria deles. Ficaram todos ricos e felizes. E entrou por um perna de pato e saiu por uma perna de pinto, mandou El-Rei Meu Senhor, que me contassem cinco...

Francisco Ildefonso (Chico Preto)
Praia de Areia Preta. Natal.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1986. pp. 163-5.